POR: Rosimayre Souza de Oliveira
Depois de receber tantos nãos, a ponto de começar a considerar a
hipótese de retornar pra Bahia, Conrado finalmente conseguira o tão sonhado
emprego em São Paulo. O curso de Técnico em Transações Imobiliárias lhe possibilitou
o emprego de corretor de imóveis. O salário não era o desejado, mas acrescido
das comissões que certamente receberia daria para começar a projetar um futuro
bem melhor do aquele a que a vida medíocre como comerciante lhe proporcionaria.
__ Muito obrigado, Sr. Carlos! O Senhor não imagina o quanto esse trabalho
significa para mim. Estou tendo a chance de recomeçar. Hoje se inicia um novo
ciclo em minha vida, um passo que me afasta do rótulo de fracassado - agradeceu
visivelmente emocionado, ao gerente da corretora.
__ Desejo-lhe boa sorte! Confio que fará um excelente trabalho - disse-lhe o
gerente, despedindo-se em seguida.
Durante a caminhada até o ponto de ônibus, debaixo de um sol que fazia tremer
sua visão, Conrado foi subitamente tomado pelas lembranças de sua vida
interiorana, onde tudo era tão perto, mas tão pequeno, a ponto de não caber
seus sonhos naquele pedaço de chão.
__Ah, não! Não vai dá certo, homem! Isso é loucura! Não podemos nos desfazer
das nossas coisas aqui, pra irmos recomeçar do zero numa cidade grande, sem o
apoio de ninguém. Isso é uma atitude insana.
__ Vamos, Clarice! Acredite tudo vai dar certo! Teremos uma vida melhor, bem
melhor do que essa que levamos aqui.
__ Ok. E se der errado? O que faremos?
Conrado tentava a todo custo convencer sua esposa a mudar de vida, a sair da
mesmice e do marasmo do lugar em que viviam.
__ Não suporto correr riscos, preciso de segurança, de estabilidade. Sonhos não
enchem a barriga de ninguém. Não podemos deixar tudo para darmos um tiro no
escuro.
__ O que você chama de “tudo”, Clarice? Uma renda mensal que mal dá para suprir
as nossas despesas? O comércio está cada dia pior, os clientes estão indo
embora. Estamos nos tornando uma cidade fantasma, sem perspectivas de
progresso. Não, eu não quero que o Vinicius cresça nesse lugar que não oferece
oportunidade a ninguém. Se continuarmos aqui, a vida dele será uma cópia
rasurada da minha. Não, definitivamente, não posso permitir que isso aconteça.
Eu não tive escolhas quando jovem, mas meu filho terá.
Decidido, Conrado sabia estar usando os argumentos certos para convencer
Clarice a adquirir a coragem necessária para as mudanças que pretendia. Seis
meses fora o tempo suficiente para convencê-la de seus propósitos. Tendo
Vinicius como aliado do pai, impossível manter-se resistente.
“Ai, meu Deus, esse emprego surgiu no momento exato. Já estávamos ficando no
vermelho. Não sabia mais o que dizer a Clarice. Agora não vejo a hora de chegar
em casa, abraçá-la bem forte e lhe dar a notícia mais esperada dos últimos
dias”__ pensava Conrado, ao cruzar a Avenida Paulista.
O sol, a ansiedade por chegar logo em casa, os pensamentos revoltos, tirara-lhe
a atenção, ignorando o sinal fechando à sua frente. Alguns passos, e uma freada
brusca interrompem os sonhos daquele homem.
Clarice estava terminando de fazer o almoço quando o telefone tocou:
__D. Clarice? O seu esposo...
As palavras que se seguiram descreveram friamente mais um acidente fatal em
consequência da cotidiana irresponsabilidade dos condutores de veículos no
trânsito caótico de São Paulo. Motoristas sempre tão apressados, estressados
com o ritmo frenético imposto pelas grandes metrópoles.
Clarice ouviu, imobilizada, àquela notícia avassaladora, esforçando-se para
continuar de pé, pois naquele instante todos os seus músculos foram afetados,
provocando-lhe uma espécie de entorpecimento instantâneo. A voz de Vinicius
trouxe-a de volta do estado de transe.
__Mãe, o que está acontecendo? Por que você está chorando?_ impacientou-se
Vinicius, diante do silêncio da mãe.
__Parece que seu pai sofreu um acidente e... _ esforçava-se para manter o
controle e demonstrar um mínimo de equilíbrio, mas a reação do filho a deixava
ainda mais desnorteada.
__ Meu pai o quê?! Como assim? Não, nãooo é possível!
Com a trágica morte de Conrado, Clarice e Vinicius tiveram que retornar para
Ouro Verde, de onde ela sabia nunca deveria ter saído.
Com a ajuda de familiares e amigos, conseguiu reabrir o antigo comércio, um
mercadinho a poucos metros da casa onde moravam. Dia após dia, a vida parecia
retornar à antiga rotina, porém a ausência de Conrado se fazia presente a todo
instante e em todos os lugares, principalmente no trabalho, pois era lá que
passavam a maior parte do tempo. Estava difícil conciliar os afazeres
domésticos com o trabalho, pois ultimamente não contava mais com a ajuda de
Vinicius. Depois da morte do pai, ele havia mudado drasticamente. Antes, vivia
em função dos estudos e era o braço direito deles no mercado. No entanto,
depois que retornou pra Bahia, Vinicius, um garoto de dezessete anos,
extrovertido, cheio de amigos e de planos para o futuro, passou a viver
enfurnado dentro de casa e não rara às vezes, trancado em seu quarto,
afastando-se de todos. Simplesmente ignorava todo aquele esforço da mãe, o
trabalho estafante que vinha minando suas energias, gradativamente.
Apesar de entender a falta que o pai lhe fazia, afinal sempre foram muito
ligados desde a infância, Clarice começou a perceber que poderia haver algo de
muito errado com o filho.
__Não sei mãe, ele tá muito esquisito _ confidenciou Clarice a D. Glória.
__Esquisito como, fia?
__Ele mudou completamente depois que retornamos pra cá. Não há nem vestígios
daquele menino alegre, brincalhão, que gostava de estudar e era super carinhoso
comigo. Agora ele está distante, até agressivo.
__A perda do pai ainda é muito recente. Ele não superou ainda, mas daqui
a pouco tudo isso passa _ disse a avó de Vinicius.
Em casa, à noite, Clarice caminhou em direção ao quarto do filho para tentar
convencê-lo a comer alguma coisa, quando ao se aproximar notou algo estranho.
__Vini, por que você está tirando e vestindo a mesma roupa repetidas vezes? _
perguntou.
__Preciso fazer isso, se não vai dar tudo errado.
__Como assim? Do que você está falando?
__Me deixe em paz, mainha! _ gritou, batendo a porta do quarto.
Clarice se afastou totalmente desconsertada com aquela situação que a deixava
cada vez mais preocupada. Esperou o filho dormir e, sorrateiramente, voltou ao
seu quarto. Abriu o guarda-roupa cuidadosamente para evitar algum ruído capaz
de acordá-lo e observou surpresa, que suas roupas estavam minuciosamente
arrumadas. “Engraçado, ele dobrou todas em forma de círculo... Que estranho!
Esse guarda-roupa sempre esteve uma bagunça...”
No dia seguinte, na hora do almoço, Clarice quis saber:
__Vini, por que você dobrou suas roupas daquele jeito?
__Ahhh! Não acredito que você mexeu nas minhas roupas! Você não poderia ter
feito isso. Agora elas estão todas contaminadas. Vou ter que lavar uma por uma!
__E por acaso eu estou com alguma doença infectocontagiosa para contaminar suas
roupas, hein? _ perguntou, indignada.
__Você pega em dinheiro o dia inteiro no mercado. Dinheiro é sujo, cheio de
bactérias. Só eu posso pegar nas minhas roupas! Entendeu?
__Hã?! Tá louco, menino? O que está acontecendo contigo, Vinicius? Você não é
mais o mesmo desde que seu pai morreu, mas ultimamente tem passado dos limites.
E agora essa história de contaminação!
Ao relatar à
sua mãe os últimos acontecimentos, D. Glória sugeriu a Clarice:
__Acho bom você levar esse menino ao psiquiatra. Essas manias e esse
comportamento agressivo não são normais.
__Ahh,mãe! A senhora está insinuando que meu filho está ficando maluco?
__Não, Clarice. Mas você há de concordar que ele precisa de ajuda especializada
_ disse D. Glória, convicta de que essa atitude seria a mais assertiva.
__Não vou ao médico, nem amarrado! Não tô doente! _ declarou Vinicius,
colocando o seu prato bem no canto da mesa.
__Cuidado! O prato vai cair!
__Esse é o único lado da mesa que não está contaminado.
Diante da resistência de Vinicius em ir ao médico e presenciando atitudes cada
vez mais bizarras, Clarice resolveu procurá-lo sozinha com a esperança de obter
ajuda.
__Então Dr. Jonas, depois de tudo que lhe relatei sobre o comportamento dele, é
possível chegar a algum diagnóstico? – perguntou, após responder a inúmeras
perguntas do psiquiatra.
__Dona Clarice, o seu filho sofre de TOC – Transtorno Obsessivo Compulsivo –
informou o médico.
__TOC? Meu Deus! Do que se trata exatamente?
__O TOC é uma doença crônica e de evolução muito
variável, caracterizada por várias obsessões, entretanto, na maioria das vezes
está relacionada à higiene, contaminação, transmissão de doenças, bactérias,
vírus, organização dos objetos pessoais, sintomas semelhantes a estes que a
senhora me relatou. O paciente também tem a sensação de que algo está faltando,
está incompleto ou imperfeito, dificultando a conclusão de tarefas no dia a
dia. Essa incerteza constante acaba gerando a necessidade de repetição, de
lavar as mãos várias vezes, de contar de novo, de voltar ao mesmo lugar
repetidas vezes com o intuito de “desvirar” algo ou soltar alguma coisa que ele
imagina estar presa. Dessa forma, acredita estar evitando danos para si ou para
os familiares.
__Nossa, estou assustada. E qual o tratamento indicado?
__Como lhe disse, a doença é crônica e seu prognóstico não é bom. O
primeiro passo é instruir o paciente e sua família quanto ao TOC e o tratamento
necessário, que é feito através de psicoterapia e medicação com
antidepressivos.
Tão difícil quanto a própria patologia fora convencer Vinicius de que
ele estava doente e precisava se tratar. Foram dias e mais dias de tentativas
fracassadas. Até que, pesquisando sobre o assunto na internet Clarice descobre
o filme Melhor é Impossível, que aborda diretamente a questão do TOC. O
protagonista Melvin Udall, vivido por Jack Nicholson, é um escritor de romances
que sofre de transtorno obsessivo compulsivo, o que o faz viver isolado em seu
apartamento. Sai apenas para almoçar todos os dias na mesma mesa do mesmo
restaurante, usando talheres de plástico, a fim de evitar qualquer tipo de
contaminação.
“Quem sabe assistindo a esse filme, ele não consegue se perceber doente,
ao observar as suas manias no personagem?”_imaginou Clarice, agarrando-se a um
fio de esperança.
Se a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida, como dizia
Oscar Wilde, não se sabe, o fato é que Vinicius ficara completamente atraído pelo
enredo do filme. Assistiu-o inúmeras vezes até reconhecer que suas manias e
esquisitices tinham nome e ele precisava de ajuda para livrar-se delas. Não
demorou até marcar a primeira de contínuas consultas ao especialista.
__O que você está fazendo, Vini? – perguntou Clarice.
__Escrevendo, não tá vendo? – respondeu Vinicius, deitando-se sobre o
caderno.
__Escrevendo sobre o quê? Posso saber?
__Ihhh....Não, não pode!
No dia que seu pai faria 37 anos, Vinicius publica seu primeiro livro
“TOC: Temos a Obrigação de Conhecer!”
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